Autor: Cleidiana Ramos
Cordões, préstitos, batucadas, escolas de samba e festas nos clubes sociais foram as principais manifestações do Carnaval de Salvador até as seis primeiras décadas do século XX. Já a partir de 1970, com base nas coleções de reportagens e fotografias do Centro de Documentação A TARDE (Cedoc), é possível mapear um modelo em que há protagonismo para o trio elétrico e tomada dos espaços públicos. Nas manchetes de A TARDE, por exemplo, os adjetivos são indicativos de uma festa que passou a ser celebrada como uma das maiores do País.
“Nunca houve tanta gente na rua quanto neste Carnaval. Da Sé à Piedade, em certos momentos, a massa era compacta, ontem, tornando-se difícil a movimentação não só de veículos de socorro, polícia, trios elétricos etc como dos próprios blocos, cordões, escolas de samba e clubes”. (A TARDE, 11/2/1970, p.3).
O trio elétrico, na década de 1970, ainda não acompanhava de forma predominante os blocos protegidos pelas cordas. Além disso, o som do equipamento, uma invenção da dupla Adolfo Antônio do Nascimento (Dodô) e Osmar Alvares Macedo, era instrumental. Moraes Moreira, com Pombo Correio, colocou voz pela primeira vez na chamada música de trio. Começou, nessa época, o deslocamento da visibilidade do equipamento para os artistas, especialmente os vocalistas.
Gerônimo Santana acompanhou como compositor e vocalista essas transformações ocorridas a partir da década de 1970. Nesse Carnaval de 2023, o autor de sucessos como É d’Oxum, Eu sou Negão, Jubiabá e outros sucessos em variados ritmos, mas que ganharam as ruas durante o Carnaval, completa 50 anos de carreira.
“Eu comecei no Carnaval em 1973 quando eu conheci Armandinho e me incorporei na banda que ele tinha chamada Porra Louca, na Ribeira. E era assim: ele de guitarra baiana, o irmão mais velho dele de contrabaixo e 20 pessoas tocando percussão no chão. A gente tocava em casamento, em batizado e era uma coisa muito doida. Até que Osmar resolveu fazer renascer o trio elétrico Dodô e Osmar”, relata Gerônimo.
Esse Carnaval animado pelo trio elétrico começou a dar maior vazão à festa na rua. Nas reportagens de A TARDE é comum o relato da festa se espalhando pelo Campo Grande, pelo Centro Histórico, mas também pela orla atlântica e a Cidade Baixa. As manifestações mais antigas - cordões, as batucadas e os afoxés - passaram a conviver com as escolas de samba. Outras iam surgindo como os blocos de índios e os afros.
O Ilê Aiyê, por exemplo, desfilou pela primeira vez em 1975, ano em que o Carnaval de Salvador foi marcado pelo discurso de maior festa do Brasil e de ter alcançado repercussão internacional.
Esse foi o assunto da edição de A TARDE em 8 de fevereiro daquele ano.
A festa de 1975 também foi a escolhida para celebrar os 25 anos da invenção do trio elétrico. Ao final foi eleita como a melhor de todos os tempos, segundo A TARDE.
“Este foi, sem dúvida, o maior dos Carnavais baianos. Pela quantidade de povo nas ruas e pela animação que reinava em todos os pontos. Nunca se viu, em Salvador, tanta gente nas vias públicas. E isto desde a manhã de sábado. Eram rios de povo, pessoas de todas as idades, moços, velhos, meninos, formando uma massa humana como jamais acontecimento algum reuniu nesta Cidade”. (A TARDE 12/2/1975, capa).
Festa dos anônimos
Nas coleções de fotografias do Cedoc A TARDE desse período predominam as imagens de foliões anônimos, especialmente os fantasiados. São caretas, palhaços, arlequins, dentre outras fantasias.
Outro elemento sempre presente nas reportagens e nas coleções das imagens são os debates sobre a decoração da cidade. Havia discussão para definir se o tema e execução ganharam o apoio do público. No Carnaval de 1980 a ausência de seleção para a escolha dos artistas responsáveis pela decoração foi um dos principais ponto de crítica.
“As críticas à decoração tiveram início tão logo a Prefeitura, quebrando um princípio já consagrado, aboliu o concurso para a escolha do tema e anunciou os nomes dos artistas Fernando Coelho e Tati Moreno. Estes foram severamente criticados pela imprensa, principalmente, quando chegaram ao ponto de vestir de mortalha o monumento ao poeta Castro Alves, fato que foi, de imediato, reparado pelo prefeito”. (A TARDE, 20/2/1980, p.3).
A década de 1980 começou com um Carnaval marcado pelo movimento de irreverência liderado pelas mulheres que adotaram o topless. Mesmo com a proibição pelos órgãos de segurança pública por meio do Departamento de Polícia Metropolitana (Depom), o público feminino não se intimidou e adotou a prática nos clubes.
“O Carnaval dos clubes caracterizou-se pelo uso de pouca roupa por parte dos foliões, havendo aqueles onde aconteceu o inevitável topless - bustos das mulheres descobertos”. (A TARDE, 20/2/1980, p.5).
Novas fases
Em 1985, a cobertura de A TARDE ainda dava destaque para a festa realizada pelos foliões anônimos. Embalados pelos trios elétricos era deles o Carnaval baiano, mas as bandas e blocos já ganhavam terreno.
“Depois da apresentação dos trios elétricos Luz e Papa-Léguas. e também da orquestra R-Xangô tocando para o Bloco Mordomia, ontem à tarde, no Campo Grande, o trio do Eva estreou seu espetáculo, às 18h30min, com a música "Vem cantar que eu sou aquele que você amou/ O beijo, o riso, a Eva", batizada de Frevo Eva. Daí em diante, os foliões não tiveram mais descanso e o jeito foi brincar a valer. Apesar do horário programado para a saída do trio do Eva ter sido às 16 horas, muitos fatores provocaram o atraso, como o trânsito da Cidade Baixa, onde o trio estava, e também a passagem de outros carros pelo Campo Grande”. (A TARDE, 16/2/1985, p.3).
No ano seguinte, a música especializada com o sucesso de artistas como Luiz Caldas e Sarajane e batizada de axé music abriu espaço para novas transformações no Carnaval de Salvador. Foi o início de um modelo centrado nos blocos que passaram a ganhar cada vez mais características de principal negócio da festa. Os trios dessas agremiações passaram a ter as cordas para separar os associados dos foliões comuns. Esses tiveram o seu espaço na festa cada vez mais reduzido ao longo das décadas seguintes.
O trio elétrico, de protagonista, se transformou em um palco para a ascensão de astros e estrelas. Gerônimo Santana, que atravessou essas fases do Carnaval de Salvador, destaca que sente falta de um elemento que ocorria nesse processo: cuidado com a sonoridade das harmonias nas músicas que, em sua avaliação, perdeu espaço para a potência dos trios elétricos. Além disso, para ele, em muitos casos, a experimentação afastou-se de considerar toda a cultura em torno do Carnaval, especialmente o de rua, como algo central.
“Todo artista popular tem sempre o Carnaval como referência porque o Carnaval da Bahia é um festival. Eu vejo como um festival. Já foi muito mais legal do que é agora. Eu me preocupo muito com o excesso de volume e a poluição visual. Quando você vê um trio elétrico sem ninguém é uma coisa linda de se ver tocando. Com muita gente parece um cacho de banana. Vai fazendo aquela acumulação e você demora para ver o artista. Muitas vezes você sabe quem é artista, ouve a voz dele, mas não o vê. Essas mudanças foram também o que fizeram com que a música da Bahia perdesse força. Se quer fazer uma coisa diferente coloca o DJ em cima do trio elétrico. Mas já vi várias pessoas ao lado de trio elétrico com DJ andando tristes. Então essa coisa do diferente é muito perigosa”, analisa Gerônimo Santana.
Após dois anos sem Carnaval, por conta da pandemia de coronavírus, há expectativa sobre o que será apresentado nas ruas. Sabe-se da crise, dos desafios para todas as agremiações e poder público, mas, de repente, essa parada pode ter servido para as articulações e experimentações que volta e meia fizeram dessa festa algo tão especial.
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia
*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.
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